terça-feira, janeiro 29, 2008

Dias de nuvem

Habitei entre nuvens, não como moram os anjos, posto que não existem, existem sim a chuva ácida e aviões que as perfuram sempre na hora errada – como seria lindo presenciar a um relâmpago que atravessasse um Jumbo. Estava embalado entre nuvens como entre as poderosas e suaves pernas de uma menina com nome de ilha, aliás, lisa toda ela, estremecendo-se comigo exatamente ao mesmo tempo, tão líquida sempre, lágrimas, saliva, seiva, suor e seus perfumes indefiníveis como os nomes de nuvens dentro de uma tempestade antes de ir embora de minha vida para sempre ou até o próximo fim de semana, o que chegar antes. Talvez fosse mais corajoso enfiar essa página numa garrafa e esta ao oceano, mas o medo de que daqui a muitos anos meu navio novamente corte o caminho da garrafa com meus dias nublados me desistiram da idéia. Verei novamente os filmes da família Corleone, sua condenação ao amor e ao sangue – mas de quanta vida e quanto estilo eram capazes quando anunciavam “vou lhe fazer uma proposta que não poderá recusar” –, e minha própria condenação à orfandade como pai, como irmão, como filho, como parte de alguma comunidade (nem que fosse um escritório). Pensarei em Cat Power rouca entre trovões e guitarras ingênuas e em como é difícil fazer músicas simples – que foi o que me veio à mente quando fumava salvia divinorum e ouvia A love supreme e despencava triturado por rodas negras através de um abismo de estrelas suspenso por alicates de veludo buscando manter a concentração no jorro contínuo que escapava do saxofone de Coltrane, não é fácil cair, é preciso pureza no coração para cair sinceramente, sem dúvida nem distração, mesmo que durante um sonho. Para toda a vida serei um homem preparado para cozinhar com algum esmero seu arroz, seu feijão, suas batatas e seu filé enquanto assiste a um jogo de futebol que termina em zero a zero, e isso jamais deverá ser motivo para melancolia, mesmo que na rua um bloco de carnaval dance euforicamente sob a chuva, lição aprendida com o Vila-Matas de Paris não tem fim: “Continuei vivendo em desespero, mas com momentos de estranha felicidade que de vez em quando me vinham – continuam vindo – do rock and roll”. E me lembrarei de quando era pequeno e queria comer algodão doce pois na minha cabeça era um jeito de me fundir às nuvens e suas feições cambiantes, o algodão doce alimentaria minhas faces com a natureza das nuvens até que eu pudesse ser o que quisesse, viajante, roqueiro, assassino, leitor, escritor, cozinheiro, amante, órfão ou simplesmente algo que flutua até virar chuva, vapor, gelo ou véu de noiva para a lua.